Suyane Moreira: a vingança da mestiçagem no Cariri
Na vida de repórter tem a história que você está apurando, aquela mais convencional que acaba nas páginas de jornais e revistas, e o mar de história que você atravessa na estrada.
Estávamos em Guaribas, nas enconstas da Serra das Confusões, Piauí, quando o nosso motorista Edmundo solta, inadvertidamente, uma frase sobre as condições precárias do lugar. Para quê.
– É, meu filho, aqui pode ser atrasado, mas garanto que um cabacinho você só encontra por essas terras. Pode andar essa região toda, onde tem progresso e coisa moderna não tem mais uma virgem, nem pra remédio – saltou de lá seu Antonio Rocha, 78, haja janeiros e sabedorias nas costas.
Tomou mais uma aguardente. E completou a tese:
– Daqui para São Raimundo Nonato –onde essa francesa ai inventou que acharam o primeiro macho das Américas- até chegar em Teresina, é tudo mulher bulida.
A francesa, no caso, é a renomadíssima arqueóloga Niéde Guidon, responsável pela descoberta de de que o primeiro homem do continente foi piauiense da Serra da Capivara.
Outra cachaça, com aquela clássica cuspidela no pé do balcão, e o velho Rocha foi para cima do nosso taxi-driver, Edmundo era a cara de Robert de Niro:
-Vosmicê prefere progresso, coisa avançada, ou a honra de casar com uma fêmea virgem de tudo?
O homem foi ficando brabo. Ajeitava a peixeira na cintura a cada frase. Por via das dúvidas o motorista inventou um agá qualquer e foi para a pensão onde estávamos hospedados.
-Pode andar que você não encontra mais uma virgem nas redondezas. A novela esculhambou com tudo, mas aqui em Guaribas ainda tem ordem. O cabra não pode bulir com moça assim na cara dura não. Até pra amolegar os peitinhos demora coisa de três meses para lá.
E seu Rocha, oculões verdes fundo-de-garrafa, mira, da frente da mercearia, as moças que passam com latas d´água na cabeça:
-Aquela ali, repare, é bulida. Mas foi bulida fora, pras bandas de São Raimundo Nonato, cidade grande, safadeza sem regulamento. Deve ter sido o tal do primeiro homem das Américas – solta a gargalhada envelhecida em tonéis de alambique.
Prossegue pondo sentido no mundo:
– Aquela ali, não, moça toda, direitinha,boto essa mão velha calejada no fogo! – diz. –Um pai brabo, come o figo do cabra que encostar naquelas carnes.
Realmente a morena apontada pelo velho Rocha me deixou nervoso.Talvez a mais bonita que já vi na vida. Faria de Camila Pitanga medalha de prata no concurso local de Rainha do Milho.
A morena passa faceira. A cara da atriz Suyane Moreira, minha Iracema predileta. A água do balde salpica seu rosto levemente. Não é só o clichê da brejeirice não. É beleza suprema, a vingança da mestiçagem.
-É tudo rapariga, quenga – sentencia um senhor mais adiantado na cachaça, infelizmente não gravei o nome. –Virgindade aqui já era.
Rocha vira um demônio:
-Só se for na sua casa! – rebate.
O sururu está formado.
-Eu tô na brinca, homem de Deus, não é na vera não – recua o anônimo cachaceiro cordial.
-Bulida mesmo aqui eu conto nos dedos, e tudo, como eu ja disse e redisse, bulida fora. Tem uma até que se empregou no cabaré de Beth Cuscuz, lá em Teresina, falam que é ambiente de classe, classe média alta.
Seu Rocha está impossível no seu diagóstico cabacístico:
-Aquela ali também mostra os panos – julga o velho.
“Mostrar os panos” é dizer antigo. Do tempo em que as moças, depois da primeira noite, exibiam, orgulhosas, o lençol manchado de sangue no varal na frente de casa. Para não deixar dúvida sobre a virgindade que levou até a lua de mel.
A noite chega por trás da Serra das Confusões. As mães despacham meninos para arrastar os pais cachaceiros das bodegas. Os pais tentam engambelar os meninos com alguma besteira, pipoca doce e guaraná caçula.
A mulher do até então indomável Rocha vem à venda e o arrasta para casa:
-Seu cachorro pé-de-cana!
Ele vai mansinho, mansinho.
A bodega inteira, uníssono: “Dominado”.
Anoitece na Serra das Confusões. No alto-falante do Parque de Diversões toca “Amor de rapariga”, o hit forrozeiro do momento.
As boyzinhas –como são chamadas as meninas-, cabelo cheirando a neutrox, passeiam com seus segredos e supostos cabacinhos.
Amanhã segue a viagem.