E Abelardo da Hora recriou a mulher
23/09/14 20:47Morreu hoje (23), no Recife, um gênio brasileiro: Abelardo da Hora, 90, escultor, pintor, ceramista, gravurista e poeta. Com várias obras-primas e públicas, é imortal na paisagem pernambucana.
O erotismo ao esculpir as suas mulheres e o permanente senso político de justiça social. Marcas do criador e do cidadão instigado.
A presença feminina faiscava seus olhos em um repente. Como apreciava. Testemunhei a cena muitas vezes na sua oficina.
A vida toda esteve ao lado de Margarida, sua mulher; amava todas as outras apenas como artista. Que fogo, que criatura flamejante, que fulgor!
Em 2006, escrevi uma crônica inspirada na inflamável figura. Fica aqui como breve homenagem:
Uma das coisas mais lindas do mundo é um velho enxerido. Um velho lindamente safado.
O enxerimento como uma safadeza que nos mantém crente na existência.
O enxerimento cortês, o flerte quase inocente, a loa dita para a cabocla que passa, o verso rimado, o mote para a negra, para a mestiça, para a morena, o pé-quebrado para a branquinha cheirando a leite, o acróstico para todas, maneira de esticar a vida, como no enxerimento do meu avô João Patriolino, que deixava vó Meranda, índia de Águas Belas, enrubescida.
O enxerimento lírico de Abelardo da Hora, que grande homem, quase Deus a tirar do barro outras costelas, e que amor à sua própria dama, que magrinho com amor de sobra, que olho aceso feito brasa, que chama, como na sua canção predileta de Capiba, com letra de outro velho enxerido, o farto Ascenso Ferreira.
Andava com certo fastio do mundo quando vi da Hora na tevê, num programa da Globonews, merecida homenagem a um dos nossos maiores escultores, da Hora, 82 anos, mas com uma fome de viver da gota, da Hora com um olhar apaixonado para as mulheres, todas que apareçam à sua frente, da Hora cantando lindamente a repórter, da Hora com olhos marejados por uma existência de solidariedade aos lascados e devoção às fêmeas do universo.
E a vontade de fazer novas coisas desse homem? Meu Deus, dê-lhe uns dois séculos e meio de vida, ele merece, e quando chegar aos 250, meu Deus, dê mais um chorinho, repare como ele é comovente, repare como ele amassa as costelas do barro, repare como ele parece Deus fazendo mulheres.
O enxerimento é a gasolina azul dos mais velhos, prorroga os dias, renova as folhas das folhas do calendário.
Um velho enxerido sente de longe quando se aproxima uma mulher bonita, fica logo aceso, bate as asas, tem o tesão do galo e a liberdade do cachorro.
Toda liberdade do mundo para um velho enxerido. Um velho enxerido tem a beleza de um louco, passagem livre, pode tudo.
Um velho enxerido reinventa a mulher, como se a esculpisse naquele instante, não há feiura para um velho enxerido, tudo é beleza para este homem.
Lembro de minha vó Meranda, Merandolina Freire de Lima, minha vó índia, minha vó com a mão na boca, envergonhada, cerimoniosa, diante das loas de seu João, que não deixava uma mulher passar em paz na frente de casa.
Ele ouvia os passos da nega e já começava o repente. “Vôte, João, tu não tem jeito mesmo”, dizia baixinho vovó. Até as moças ficavam sem graça, mas que gostavam, gostavam. Algumas delas passavam não sei quantas vezes no terreiro e, lembro-me bem, como ficavam tristes quando não mereciam a renovada oração diária, a loa, o capricho, o decassílabo invocado.
Minha vó ficava passada, ruborizava mais ainda quando o velho enxerido se voltava para ela, reza de todas as tardes, e dedicava-lhe versos inéditos, mesmo depois de 50 anos de convivência.
“Vôte, João, tu não tem jeito mesmo!”
“Fazer o quê, Meranda, se o meu amor é novinho em folha e cada dia é uma roça nova?”, rebatia ele, arrodeado de cachorros e galos no quintal de casa.
Viva Abelardo da Hora.
A respeito de sua cronica na seção de esportes tenho a declara que:
Todo racista é filho da puta
Todo homofóbico tambem……
Como eu gostaria de foder suas mães.
Cearense apaixonado pelo Recife, onde morei até novembro passado, por bons 30anos, pude me refestelar na beleza das obras que este velho socialista esparramou por toda a cidade. Suas mulheres de pedra são como aquelas de carne, osso e ardor que ao passarem sugam nossos olhares e desejos. Agora DA HORA vai espalhar mulheres montadas nos carneirinhos de nuvens.
O homem velho deixa a vida e morte para trás
Cabeça a prumo segue rumo e nunca,nunca mais
O grande espelho que é o mundo ousaria refletir os seus sinais
O homem velho é o rei dos animais
A solidão agora é sólida,uma pedra ao sol
As linhas do destino nas mãos ,a mão apagou
Ele tem a alma saturada de poesia ,soul e rock´n´roll
As coisas migram e ele serve de farol.
A carne,a arte arde , a tarde cai
no abismo das esquinas
A brisa leve traz o olor fulgaz
do sexo das meninas.
Luz fria,seus cabelos tem tristeza de neon
Belezas,dores e alegrias passam sem um som
Eu vejo o homem velho rindo numa curva do caminho de Hebron
E ao seu olhar tudo que é cor muda de tom.
Os filhos,filmes,ditos,livros como um vendaval
Espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal
Mas ele dói e brilha único,individuo,maravilha sem igual
Já tem coragem de dizer que é imortal
O HOMEM VELHO -Caetano Veloso
Apesar de não desconhecer o mundo das artes, até ontem (24/09), desconhecia Abelardo da Hora. Na busca de algo interessante na TV aberta, assiste na TV Senado um documentário sobre ele, e no instante que o ouvi, tudo o que essa crônica cita se mostrou verdadeira diante de mim.
Abelardo da Hora morreu fisicamente, mas vai permanecer vivo em todos que tiverem o prazer de conhecer a sua história!
Gilze, falaste tudo. sem palavras. beijo
Bela cronica….só o passar dos anos, que nos dá a sabedoria necessária, para entender e apreciar as mulheres.
Só o tempo, meu caro, só o tempo. abraço
Xico
Poeta sem rima
Voce e comovente
Homem como esse: Macho Jurubeba e de Sensibilidade merece : Praça, Viaduto, Parque, Rua e Avenida. Museu e Biografia. Coisa que o Amigo Xico Sá pode escrever. Abraço. Eduardo Green.