O fim de um bar é uma queima de arquivo
03/04/13 20:52Quando um bar, um bar-restaurante, um cabaré gostosinho, um banco de praça, uma esquina qualquer desaparece, não deixa de ser uma tentativa de fazer uma queima de arquivo.
A pior das queimas. A queima sentimental, sinistro afetivo, o apagão da memória dos homens de boa vontade.
É com pesar que escrevo sobre o fim do Bode Dourado, também conhecido como “O Cabeça Branca”, ponto de encontro de velhos amigos & novos amores na Encruzilhada, o jardim dos caminhos que se bifurcam no Recife ou Hellcife –só para lembrar que nesse caso o inferno são os especuladores imobiliários mesmo!
“O melhor bar do mundo, desde 1976, fechou”. A manchete mais triste de um repórter acostumado a grandes furos, o sobrinho João Valadares, me deixou bodeado.
Ali comecei namoros, acabei casamentos, recomecei tudo de novo com a mesma mulher, levei moça de São Paulo para conhecer e, principalmente, consolidei amizades para século seculorum, amém.
Quantas teses filosóficas e quantas pelejas de embate político naquela calçada-galeria. A morte de um bar leva todos esses ecos consigo. Leva nossas retinas congeladas de alumbramentos diante de todas as gostosas que passaram na nossa frente.
Com licença que hoje estou piegas. Quando um bar morre, lá se vai também um pouco da gente.
E pensar que não fui ao almoço com a galega, que me intimara na última sexta-feira, o penúltimo dia de funcionamento da honrada casa! E que galega!
Seu Evaldo, o sábio Cabeça Branca, não me perdoará se souber dessa minha amarelada. Seguramente vai me receitar o milagre do Cepacol erótico. Pense num bochecho poderoso!
Além do caprino no capricho, dourado bode como rezava o santo nome do estabelecimento, as receitas e histórias do impagável proprietário valiam sempre a viagem. E dona Gil, mulher do Cabeça, só ria da pabulagem do marido-figura. Potência!
Outra bela história de tal sítio caprinoetílico: era o melhor lugar do país para se torcer em paz contra a seleção do Brasil. Quem lembra disso é o diretor de cinema Lírio Ferreira. Imagina na Copa!
Ruim, Joazim, que nossos bares morram antes da gente. Deveria ser proibido pela ONU, deveria constar da carta universal dos direitos do homem.
É o tipo de memória que não vamos encontrar no Google, Beto Azoubel. Ai de mim, Walter Benjamin!
É o tipo de memória que, uma vez lá, naquela roda de chapas e damas, rebobina outras memórias e nos faz mais vivos.
Vítima dos tubarões imobiliários, voadores como os de Arrigo e perigosos como os de Boa Viagem, muitos bares e restaurantes tradicionais tendem a desaparecer da vista e do alcance.
Alguns raros reaparecem depois em outras esquinas, como vi recentemente em SP. Até que os tubarões descubram. Porque são bares que valorizam a área e são perversamente engolidos.
Cabeça Branca cansou de teimar. Resistiu como pode. Segunda-feira, ao lado de dona Gil, levou o fogão e a fome de viver para casa. Estava puto, blasfemava, conta Nilton Perreira, outra frequência ilustre da área.
Aos céus blasfemo aqui também.
P.S. Há um clamor para que o estabelecimento seja reaberto no Uruguai, sob o batismo de “El Chivo Dorado”, óbvio. Todo apoio!
Olá,
Sou proprietário de um bar tradicional na cidade de Santos-SP ha quase 30 anos – Torto Bar, situado no canal 4 embaixo de um dos prédios tortos da orla da praia. Na bagagem, muita testosterona, muita gente boa (outras nem tanto…rs) e muita música de qualidade proporcionada por artistas de tres gerações. O Torto é um palco que tem um bar. Passamos por situação parecida no momento…fomos intimados pela prefeitura municipal a encerrar as atividades por conta da falta do AVCB, documento exigido pela prefeitura e que, em contrapartida, e por força da lei é obrigação do condomínio providenciar. Ocorre que o condomínio não tomou as devidas providências e estamos com a corda no pescoço. A cidade tem se manifestado pelas redes socias de maneira comovente e escrevo aqui em solidariedade aos frequentadores do “Bode Dourado”, embora não tenha tido a oportunidade de conhecer e para parabenizar o autor do texto que revela muita sensibilidade e traduz de maneira poética a importância do legado de um bar. Tenho a convicção que ao longo dessa nossa trajetória o Bar do Torto contribui no sentido de desencaminhar muito jovem fadado a levar uma vidinha normal e sem graça. Com isso, espero poder receber um dia o povo do Recife e peço humildemente a torcida de todos para que não ocorra mais uma queima de arquivo aqui na minha querida cidade de Santos.
Michel Pereira – Torto Bar – 30 anos
Agora! O Cabeça-Branca tinha que ganhar pelo menos uma homenagem, já que levaram os bodes dele. rapái, eu teva nesse dia em que nosso gatito Lírio Ferreira assaltou o recôndito desejo coletivo e, com a licença do Cabeça, encorporou um admirável traidor da pátria. foi sensacional!
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Ai que saudades do meus recantos em Recife…Assim vc. me mata Xico!!!O que tem de melhor na cidade são esses recantos…E o bar do Gordo na Torre onde se degusta as melhores comidinhas típicas em boa companhia…Continua firme e forte?
…mas se algum dia talvez a saudade apertar.Não se preoucupe,afogue a saudade num copo de um bar….essa é do Ari Barroso
Em Vitória/ES, fecharam um belíssimo bar chamado Balacobaco, onde as paredes eram cobertas de belas cachaças (sobretudo mineiras), os petiscos eram deliciosos, a cerveja era sempre no ponto e as refeições melhores do que em muitos restaurantes metidos a besta. No pequeno palco, programação intensa de chorinho. Aconchegante, arejado, bom atendimento, atmosfera descontraída, tudo nos trinques.
Não era um botecão. Pelo contrário, era até arrumado, mas informal e receptivo.
Pois bem. Fecharam o bar em excelente ponto sob o pretexto de “investir” numa franquia da Devassa, o bar mais sem identidade que já vi, aberta num ponto saturadíssimo e que, claro, teve vida curta e já fechou, dando lugar a uma dessas casas que vendem cerveja cara para consolar os consumistas que não gostam de vinho. Triste.
Choquei ao saber!!!
Só quero ver o que vai dar se o João Porkinho, aquí de Prudente, fechar algum dia….
Nem quero pensar nesta desgraça….
Nasci na Encruzilhada e conheço bem esses arredores desde que, *pirraia*, acompanhava meu pai nas maratonas etílicas do Clube das 6 (começavam a beber às 6 da manhã). E o intinerário era bom: Mercado da Encruzilhada, Seu Evaldo, Tepan, pracinha do Hipódromo, Balcão Centenário… pense!
Hoje tomo as minhas na antiga Venda de Bob (hoje Eduardo) e no melhor fim de noite do Recife: Empório Sertanejo.
Ah se fecharem o Pub Liverpool em São Bernardo do Campo, o chicote vai estralar, farei uma revolução bem pior que a sindical que havia na República do ABC nos anos 70 e 80. Que os bares sejam eternos enquanto durem!
Xico, tão doloroso quanto a morte do estimado boteco é seu definhamento ou descaracterização em vida. Aquele que já foi meu bar preferido mudou de direção e perdeu todo seu encanto, sua cara, quando seu público também mudou.
É como um parente em estágio avançado de Alzheimer: vivo, porém perdido.
…e as pessoas que eu detesto,diga sempre que eu não presto,que o meu lar é um botequim.Que eu arruinei a tua vida,que eu não mereço a comida ,que voce pagou pra mim.Histórias de um grande frequentador dos bares da vida:Noel Rosa.
XICO, QUANDO NÃO ARROBAM NOSSA MEMORIA EROTICA-ETILICA-PORNOGRAFICA RESOLVEM DAR UMA NOVA DIAGRAMAÇÃO, TU LEMBRA DO SAVOY? CASQUINHO DE CARANGUEIJO, BOLINHO DE BACALHAU, CERVEJA GELADA O POEMA DE CARLOS PENA FILHO NA PAREDE.
O QUE FOI FEITO?
E O “CU DO PADRE” EM PINHEIROS?
UM FESTIN DIABOLICO IMOBILIARIO.
SAUDAÇÕES CORAIS.
Quando uma cidade perde seus referenciais perde seu lugar neste mundo globalizado, passa a ser igualzinha a qualquer outra. O Bode Dourado, Cabeça Branca ou Bar do Evaldo era um lugar assim, referencia do Recife, cara do cotidiano dos recifenses. Teremos que conviver com mais esta morte do Recife.
Outro dia fiz um samba para o meu bar predileto que falava assim:Vou ao bar do Pedro Gama,pra falar de futebol e da vida do alheio;discutir politica nacional e pra não quebrar o pau é só não botar a mãe no meio.Todo botequim é um espaço democratico e quando fecha é como se nos tirasse uma tribuna para expor as nossas opiniões com toda liberdade.É uma pena.
Alguém tem o contato do Cabeça Branca? Estou querendo passar uma dica de um lugar massa ali pertinho do Mercado da Boa Vista, caso ele ainda tenha pique para reabrir o Bode Dourado
Caro xico,este bar não estavas na nossa lista de desenhos…
Sinto falta do Riviera também.Depois do escuro, Ninho, Atlantico …
Só para lembrar de alguns bares cinematográficos: o “Bar Esperança”, do Hugo Carvana; e o “Bar e Restaurante Catimbau”, onde se pode amar a linda Suyane Moreira e conversar toda a noite com o Zé Elétrico José Dumont, no Árido Movie de Lírio Ferreira.
Em Fortaleza não é diferente, meu caro. Todos os dias um bar é assassinado para que em seu lugar surja uma igreja ou um estacionamento. Ainda bem que o bar Flórida ainda se mantém firme e forte.
É por isso que sempre gosto de ir a Garanhuns! O Boião’s bar sempre está lá com suas ilustres figuras!
Eu levei o meu gato – felino, de verdade – para comer ali. O bode mais gostoso em linha reta do Recife. RIP BD!
Quando fecha um bar onde a gente viveu amores e fizemos confissões somos obrigados a fechar uma conta sentimental. E isso envelhece uns 10 anos, porra!
é isso mesmo,Kamis,é uma perda nada facil.beijo
Pois é meu caro Xico! Ainda se fosse para que algum desses companheiros que lutam por uma moradia desfrutar eu poderia achar com todas as minhas dúvidas que seria um luto egoísta, porém não é o caso nem de longe, compartilho da sua dor ao ver lugares de tanta troca de experiências, sentimentos e vida darem lugar para muralhas mórbidas, agressivas e insensíveis que não respeitam em nada a história e qualquer significado e importância que aquilo representa em um bairro. Semana passada combinei com um amigo para irmos jogar bilhar no Bar Snooker Big Small em Pinheiros e quando chegamos lá o que encontramos foi um Big de um tapume que escondia uma obra que acabava de iniciar. A principio olhamos um para a cara do outro e perguntamos o endereço não é esse? Na esperança de que era apenas um distúrbio instantâneo e havíamos errado o endereço, mas não, o acolhedor Big Small da Arthur de Azevedo 1436 havia nos deixado, sem nem nos dar a oportunidade de um adeus!
Meus pêsames Xico!
Pois é, caro Guilherme,se fosse para resolver o deficit imoral de moradias populares eu até brindava. mas a gente sabe q nunca é,nunca foi e nunca será. abrazo
Dificil é ficar sabendo em Recife, que o bar de um querido tio de sp, que ja não se encontra mais entre nós fechou!! Lugar de muita confraternização e sinucas noite a dentro!!
Putzgrila! Falou bem! Estendo suas palavras ao pub fechado nesta última sexta em São Paulo, o ‘Berlin Bar’. Foi o primeiro point underground com direito a rockabilly que ouvi falar em SP. Sou fã do seu trabalho.
poxa, Magno, num sabia do fim do Berlin.belas lembranças de lá. q mierda. abrazo
O livro intitulado “A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal” (Rio de Janeiro: Editora Companhia de Freud, 2005), de autoria do filósofo francês DANY-ROBERT DUFOUR (nascido em 1947), nos fornece o contexto no qual é possível entender o porquê de tal devastação (no caso, a relatada por Xico Sá) ocorrer. Aqui, na cidade do Rio de Janeiro, acontece a cada dia a mesma coisa: no lugar de uma livraria, uma loja de roupas; no de um cinema cult, uma igreja evangélica ou um banco, etc, etc. Marx já dissera no “Manifesto”: “No mundo burguês tudo o que é sólido se desmancha no ar”. E Nietzsche: “O deserto cresce!”. {Abraços!}
É verdade. Em certos bares são escritos capítulos inteiros de nossa história. Também fiquei muito triste quando vi um posto de gasolina no local que era o Azulzinho – UFPE.
em tempo: em quera, errado. Onde era.
um bom bar, como diria o paulo mendes campos, é um “bienaventurado albergue a cualquier hora”. mas, pior que a destruição de um genuíno, é a tentativa de “ressurreições” estilizadas ao gosto do turista-comprador, mais lamentável que a morte de um bar é o morto-vivo do tal bar-parque-temático, onde até a sujeira é minimamente calculada. SP está repleta deles, e o novo “Riviera” será mais um entre tantos. Longa vida aos bares proletários de antanho. Saralenas!
q bela lembrança do PMC. este sim conhecia um bar. gracias. abrazo
É a civilização fodendo com a história da cidade, é o “novo Recife”. Ufa!