Perdão, leitores, mas preciso falar de minha mãe
20/09/12 04:24Mamãe fez 71 anos ontem. Por isso, em um respeito sem fim e silencioso, nunca escrevo nada nesta virginiana data. Já fui demitido uma vez em uma firma por me recusar a trabalhar no único feriado que se justifica no mundo.
Todo homem que é homem tem direito a criar um feriado na vida. Certo é que me dei a este direito. Se bem que no aniversário de Maria também nada fazia. Tudo era dela no meu imaginário calendário ad infinitum.
Se eu tiver uma filha, uma menina, juro, nunca mais trabalharei na vida. Viverei a cuidá-la.
Ninguém entende o radical encanto edipiano. Também nunca fui de me explicar decentemente. Algumas coisas não carecem de muita prosódia. A vida é pão de queijo: é comer quente e pronto.
Trabalho até nos dias de nascimento e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, menos no dia em que Ela veio ao mundo para me fazer carne e pecado.
Dona Maria do Socorro nem sabe disso direito, nunca leu nada do que escrevo, graças a Deus pertence a outro mundo, mas aqui, caladinho, mantenho o respeito.
Psiu. Mamãe está prosa. Que linda. Sorriso iluminado, quase 50 anos depois de me botar no mundo.
Tentei escrever algo novo sobre ela e nossa relação eterna. Não rolou. Então mando uma carta antiga, que guardo na minha velha caixa de sapato afetiva, onde ela reina ao lado de duas ou três fotos das mulheres da minha vida.
Mãe, ainda me lembro quando tu colocaste a rede no fundo da mala, mala de couro, forrada com brim cáqui, e perguntaste, tentando sorrir no prumo da estrada: “Filho, será que na capital tem armador nas paredes?”
Naquela noite eu partiria para o Recife, que conhecia apenas de fotos e do mar de histórias trazidos pelos amigos. Lembro de uma penca de fotografias em especial, que ilustrava uma bolsa de plástico que usava para carregar meus livros e cadernos. Lá estavam as pontes do centro, casario da Aurora ao fundo, lá estava a sede da Sudene, símbolo de grandeza naquele apagar dos anos 1970, lá estava o Colosso do Arruda, o estádio do Santa…
Quando o ônibus gemeu as dores da partida, aquela zoada inesquecível que carregamos para todo o sempre, tu me olhaste firme, e eu segurei as lágrimas tão-somente para dizer que já era um homem, que era chegada a hora de ganhar o mundo, o mundo que conhecia somente pelo rádio, meu vício desde pequeno, no rádio em que ouvia os Beatles, as resenhas e as transmissões esportivas das rádios Nacional, além de todo um sortimento de novidades daqui e do estrangeiro.
Lembro que naquele dia, mãe, ouvimos juntos o horóscopo de Omar Cardoso, na rádio Educadora (ou teria sido na Progresso de Juazeiro?). Que falava dos novos rumos do signo de Libra. Você disse: “Tá vendo, meu filho, você será muito feliz bem longe”.
A voz de Omar Cardoso e o seu mantra ecoava no juízo: “Todos os dias, sob todos os pontos de vista, vou cada vez melhor!”
Foi o dia mais curto de toda a existência. O almoço chegou correndo, a merenda da tarde passou voando… e quando dei fé estava diante da placa Crato/Recife, Viação Princesa do Agreste.
Todo choro que segurei na tua frente, mãe, foi derramado em todas as léguas seguintes. Mal chegou em Barbalha eu já estava com os dois lenços de pano –outro cuidado seu com o rebento- molhados.Em Missão Velha, uma moça bonita, uma estudante que voltava de férias, me confortou: “É para o seu bem, foi assim também comigo”.
Quando chegou em Salgueiro, além dos lenços e da camisa nova -xadrezinho da marca Guararapes-, o livro Angústia, de Graciliano Ramos, um dos motivos da minha vontade de conhecer a vida, também já estava encharcado.
E assim foi a viagem toda. Com direito a soluços, que acordaram a velhinha que ia ao meu lado, quando o ônibus chegou ao amanhecer no Recife.
Arrastei a mala pelo bairro de São José e procurei a pensão mais econômica.
Sim, mãe, tem armador de rede, escrevi na primeira carta. Naquele tempo não usava-se, em famílias sem muito dinheiro, o telefone. Era tudo na base do “espero que esta te encontre com saúde”, como a gente escrevia na formalidade das missivas.
É mãe, neste teu dia, que está quase chegando a hora, quero lembrar que a coisa que mais me comoveu foi tua coragem, que eu até achava, cá entre nós, que fosse dureza além da conta d´alma. Até falei, um dia no divã, sobre o assunto, como se eu quisesse que naquela despedida o sertão virasse o teu mar de pranto.
Eis que recentemente me contaste como foi duro, que tudo não passava de um jeito para não fazer que eu desistisse de ganhar a rodagem. Aí me lembrei de uma sabedoria que citava nas cartas e bilhetes, quando eu esmorecia um pouco na sobrevivência da cidade grande: “Saudade não bota panela no fogo”. E ainda reforçava: “Saudade não cozinha feijão, coragem, filho, coragem”.
Em nome das mães de todos os meninos e meninas que partiram, dona Maria do Socorro, quero te deixar beijos e flores.
Sim, mãe, agora já sabes que somos de uma família de homens chorões, são 04h06 de uma quarta-feira e eu choro um pouco, como fazia no fundo daquela rede colorida que puseste no fundo da mala, chorava tanto nos sótãos das pensões do Recife que os chinelos amanheciam boiando no quarto, como se quisessem tomar o caminho de volta para casa.
Chico, admiro a força da sua mãe. Diferente dela, chorei muito quando meus filhos voaram. Chorei muito e choro todos os dias, assim como chorei muito quando li sua carta. A ausència causa, em mim, dor física. Sei que o mundo é deles, sei que saudade não cozinha feijão, mas o que fazer com ela, que é tão avassaladora? Se descobrir, por favor, me avise?
Xico, meu camarada!
essa frase “Todos os dias, sob todos os pontos de vista, vou cada vez melhor!” aprendi com meu velho desde pequenininha. Hoje em dia moramos em Estados diferente, mas sempre que nos encontramos ou nos falamos ele me fala: minha filha, não esqueça de mentalizar aquela frase… e recita – A voz de Omar Cardoso e o seu mantra ecoava no juízo: “Todos os dias, sob todos os pontos de vista, vou cada vez melhor!”
Fiquei toda emocionada pelo texto e por relembrar minha infância!
“Saudade não cozinha feijão, coragem, filho, coragem”.
que lindo
Ai, Xico, estou extasiada com tanta poesia. Isso nao é carta, meu amigo, isso é poesia pura! Cada vez mais sinto que existem homens sensiveis e interessantissimos, como você…e ainda tou feliz por sua mãe ser uma xará. Bj Xico. Você é sensacional.
Chico,sou sua fã,adoro vc no Saia justa,mas essa publicação,supera tudo.FantasticaParabens pra sua mãe.Quisera eu a minha estivesse viva! Aplausos pra você.
Chorei aqui no trabalho mesmo, maravilhoso texto Xico, um texto maravilhoso, que só poderia mesmo nascer de uam relação tão essencial quanto é a de mãe e filho
Seu texto me rendeu umas boas lágrimas..tbm passei por isso
Ô texto bom, Xico!!!!
Xico, você escreve com as artérias! Suas palavras pulsam como coração de filho! Parabéns, D. Maria!! Pelo seu dia e pelo filho!! Grande poeta da vida!!
choro agora às 8 horas da manhã, seu texto foi postado par amim pela minha filha que mora a 2.700 km. é feriado sempre num dia de outubro e outro dia em fevereiro, no dia do aniversário de meus filhos. choro com a intensidade de todas as mães que desejam estar próximas de seus filhos todas as sextas, sábados e domingos…contribuo com o sal da terra e do mar. saudade é um extensão maravilhosa do amor que sentimos. grata por esta homenagem linda a todas as mães e filhos deste mundo que estão unidos pelo fio sutil do grande amor que unifica tudo.
Chico, mostrei esse texto para minha mãe por mensagem de facebook, a correspondência do terceiro milênio, e ela me confessou que chorou ao ler esta sua descrição de um jovem filho indo em busca do mundo. Ela, serratalhadense, passou pelos dois lados da moeda. Saiu de casa cedo rumo ao recife em busca de oportunidades, e que aos 50 e poucos anos não tem nenhum dos três filhos ao seu lado, pois todos tiveram a mesma natureza migratória. Natureza intrínseca, tal qual uma tartaruga marinha, que nasce indo pro mar, roda o mundo inteiro, mas sempre volta para sua terra natal.
Xico, cumpadre, você hoje deixou tio Nelson se sentindo um iniciante nas letras. O Menino Grande Antonio Maria se te encontrasse hoje, se ajoelharia a teus pés. Dona Maria, em silêncio reza as tuas palavras.
Adorei. Fiquei emociomada,pois fiz um caminho paracido. Um beijo.
Xico, sou uma dessas caririenses que deixou o sertão para viver na capital bem cedo. Hoje vivo em Sampa e te acompanho sempre no Saia Justa. Adoro seu texto tambem!bj
“Seo” Xico, eu sou daqui mesmo, de São Paulo. Mas conheço o Nordeste, especialmente a região de Triunfo e da Serra Talhada, terra varejada por Lampeão e seus cabras, de gente humilde e trabalhadora. E, por isso, bem posso imaginar a cena da partida e as tantas outras que se seguiram. Belo texto, linda homenagem à Dona Maria do Socorro. Abraço
LINDO perca 10 minutos de seu tempo e leve sabedoria para o resto de uma vida…Mae uma dádiva de Deus a minha nao a tenho mais, guardo-a nas lembranças e no coração. Feliz quem tem a sua por perto…
Tbm chorei… e só não fui pra capital…mas aconteceu o mesmo comigo! Sorte nossa que temos mães fortes assim! Lindo texto!
Xico, este foi o texto mais lindo que li nos últimos anos. Tocante, sincero e sensacional. Sou teu fã!
Ai, como me emocionei. Lembrei de meu pai e de sua trajetória. Ele foi um vencedor, Xico, assim como você. Belíssima homenagem à sua mãe! Mais um lindo texto, parabéns.
Xico ameiii, vc é fantástico
Só uma palavra para definir esse texto: Lindo!
Xico, chorei feito manteiga derretida! Que texto lindo! Que vc continue emocionando a gente sempre! Te adoro sem nem te conhecer, beijos!
Xico, não tive como não me emocionar com esse texto, pois vivi situação idêntica , na minha ida Barbalha-Recife.
Mãe é tudo de bom , é se olhar no espelho enxergando o que se pode ser de melhor nos anos que estão pra vir.
Um abraço meu querido e parabéns pela tua maezinha.
Beijos
Ah, Xico…
Quanta singeleza. Me fez até chorar de saudade da minha mãezinha.
<3
quando o encanto edipiano não cega,
ele ilumina e vira canto,
como essa linda canção pra dona Maria!
Feriado nacional!
Estou aos prantos… Minha mãe querida ao contrário de mim mas exatamente como a sua segurou e segura o dela a cada despedida. Licença Xico de eu usar esse texto pra homenagear a dona Tília também. Nome de flor e alma de guerreira que ao invés de uma rede me deu uma cartinha na primeira vez que saí do Brasil lembrando das mulheres fortes da minha família que saíram de onde estavam atras dos seus sonhos. Já sou a quarta geração delas com muito orgulho, só não sei se vou saber segurar as lagrimas no dia em que um filho meu ganhar o mundo…
Eu imaginei o Xico com 20 anos de idade lendo um livro da faculdade no seu quarto e tomando uma lata de cerveja gelada com um sol de raxar entrando pela janela.